Podemos julgar nosso progresso pela coragem dos nossos questionamentos e pela profundidade de nossas respostas. Da nossa vontade de abraçar o que é verdadeiro ao invés daquilo que nos faz sentir bem. (Carl Sagan).
Para o finzinho de janeiro reservamos um post de reflexão sobre as tendências do Investimento Social e o voluntariado para 2020: uma parada para os gestores olharem com alguma verdade para o momento em que passamos.
E para isso entrevistamos o nosso parceiro, amigo, Psicólogo, facilitador organizacional e com muita experiência na gestão de projetos sociais, investimento social e desenvolvimento de comitês e lideranças, Flávio Seixas.
Entrevista com Flávio Seixas
V2V: O ano de 2020 traz algum alerta para os gestores de investimento social privado? Qual/quais seriam?
Flávio Seixas: Nos últimos anos o Brasil passou por fortes turbulências políticas, culminando numa série de impactos na economia, no campo social, no trabalho, na cultura, na saúde e na educação. Notamos também o surgimento de um interessante fenômeno de polarização política, de acirramento de ânimos nos veículos de comunicação de massa, ocasionando um bloqueio do diálogo entre aqueles que pensam diferente.
Com os cada vez mais frequentes casos de corrupção sendo escancarados, assim como diversas tragédias sociais, crimes ambientais, fake news, as instituições, sejam elas públicas ou privadas, foram perdendo a credibilidade. O interesse político vai crescendo na mesma medida em que cresce o ceticismo e a desesperança no processo social.
Naturalmente, como é esperado nos cíclicos tempos de crise, pessoas, empresas e organizações ao lidarem com um cenário desconhecido, se sentem inseguras na forma de agir, buscam minimizar riscos, avaliar seu contexto, repensam onde investir energia, como lidar com possíveis perdas de investimento ou de parcerias, assim como refletem sobre qual o seu papel perante as mudanças políticas que ainda estão em processo.
Neste momento, é importante entender que a crise que estamos enfrentando é multifacetada e revela a obsolescência de um conjunto de valores, instituições e códigos morais, ou seja, daquilo do qual chamamos de civilização. Portanto, se encerrar em nós mesmos, nas nossas instituições e projetos, não é a resposta adequada para este momento.
A relutância em aceitar os processos de mudança podem nos levar a caminhos perigosos de fechamento e ensurdecimento, portanto é necessário reconhecer e mesmo aceitar os acontecimentos que tem se apresentado a cada instante, para que neles possamos fazer uma dobra.
O ano de 2020 deveria ser adotado como o ano da saída de si, do investimento na micropolítica das relações e na produção de diferenças. São estes os três exercícios essenciais que recomendo aos gestores de investimento social privado.
V2V: Como fluir melhor em direção aos objetivos do Investimento Social Privado e dos programas de voluntariado se aliando ao contexto atual (considerando os pontos que trouxe acima) ?
Flávio Seixas: A saída de si é um compromisso com o desenvolvimento de uma nova consciência, com o questionamento dos próprios valores morais já arraigados profundamente em nossas estruturas. Se não fizermos este importante exercício estaremos condenados a uma alienação branda, porém profunda.
Vamos fazer uma autoavaliação da nossa trajetória enquanto profissionais e enquanto líderes nas instituições onde atuamos. Nossos projetos foram de fato sustentáveis? Os legados anunciados se mantiveram com as turbulências ou se despedaçaram? Nossos projetos consideravam a autonomia, o fortalecimento de grupos sociais diversos, e investimento no processo democrático, na participação e no diálogo?
E para além do desconforto, o resultado da saída de si, é a produção de novos valores, de uma nova identidade, uma ética do acontecimento, da melhor decisão a cada momento de si. Com isso, é também naturalmente a abertura para o outro, para o diferente e para o novo. O desenvolvimento deste senso de alteridade é o que nos levará aos próximos dois exercícios: o investimento na micropolítica das relações e a produção da diferença.
As relações precedem os termos e as formas, podemos ver isso acontecendo nos processos biológicos e sociais. Vamos nos tornando aquilo com o qual nos agenciamos. Este fato que por si só revela a importância das nossas escolhas e das nossas relações, porém precisamos entender que as mesmas se encontram colonizadas, mediadas e tuteladas por nossas crenças, posicionamentos, fruto dos códigos morais e da cultura a qual estamos inseridos.
Sendo assim, em um momento onde há forte descrença nas instituições, as relações devem ser fortalecidas e cultivadas. Devemos parar imediatamente os projetos que buscam o convencimento do outro, a colonização de pensamentos e sentimentos e os processos que investem no engajamento de uma ação no mundo que seja tutelada. O caminho aqui deve ser o inverso: escutar, ver, ouvir, respeitar, considerar e sobretudo criar com o outro, investir na liberdade e na confiança.
Desta perspectiva, se relacionar é participar de certo modo de uma política que acontece no microcosmo, onde podemos de fato atuar a cada instante. Saber lidar com os conflitos para que estes se tornem energia de transformação e aprendizado é essencial para construir uma cultura quente, que nasce do contato real com o outro e não de idealizações inalcançáveis e geradoras de sofrimento psíquico. E este outro é um outro expandido, para além dos muros institucionais. Este outro é sobretudo um diferente aos nossos olhos, ao nosso mundo.
Desde modo, somos levados ao terceiro exercício, com o outro, produzir diferenças. Evitando o jargão empresarial de fazer a diferença, mas já caindo nele, perceba que há dois movimentos: performar por meio de uma estética de comportamento a inovação, com o objetivo de se continuar fazendo o mesmo, no mesmo lugar, com os mesmos padrões estabelecidos, atendendo as mesmas lógicas de sempre; ou criar espaços onde é possível o risco, o aprendizado, a exposição, a produção livre, e daí sim, deixar nascer o inesperado. O risco e o inesperado, numa relação livre e despretensiosa, simples e ao mesmo tempo refinada, é onde reside o berço para a inovação social que tanto buscamos.
V2V: Como sente/percebe o papel do gestor do voluntariado nesse porvir para aqueles que conduzem os programas de voluntariado?
Flávio Seixas: O voluntariado precisa ser reinventado enquanto participação social cada vez mais qualificada. O lugar do voluntariado não pode ser um lugar de alienação dos processos sociais como muitas vezes temos visto. Os programas devem considerar investir cada vez mais na formação crítica dos voluntários e oferecer espaço e condições para que formados, os próprios voluntários possam protagonizar projetos e ações sociais na comunidade.
Também devem cada vez mais cuidar da gestão de dados, relatórios, comunicação, facilitar todo o processo burocrático, diminuindo este peso para os voluntários, que muitas vezes enfrentam o preenchimento de uma série de formulários online ou off-line que aumentam o tempo entre o desejo de atuar e a atuação na comunidade, e quanto maior a demora na percepção de resultado, maior a probabilidade do voluntário se desinteressar no meio do caminho.
O programa deve ser dos voluntários, a gestão responsável deve se preocupar com a formação de comitês temporários para tomada de decisões participativas, orientação e mentoria de novos voluntários. As métricas precisam ser revisitadas, sabemos por meio de pesquisas e experiência de campo que o número de voluntários, horas de participação, número de beneficiados, diz muito pouco sobre impacto social. Também a atuação dos voluntários fica muito aquém das competências e potenciais que os mesmos possuem.
Com a formação média dos profissionais de grande parte das empresas, é possível pensar em ações mais estruturadas e perenes. E por fim, não existe receita que sirva a todos os programas de voluntariado, os maiores casos de sucesso são de soluções inéditas construídas com base em experiências locais, atreladas ao perfil das pessoas que participam, da localidade onde os projetos estão acontecendo, com suas problemáticas e potencialidades.
V2V: Em termos gerenciais, quais atitudes os gestores de voluntariado poderiam tomar para fortalecer internamente e externamente seus programas??
Flávio Seixas: Se colocar a serviço do outro, ir de encontro ao diferente, ao desconhecido, atuar na incerteza, fazer articulações, criar e fortalecer equipes por projetos, gerir conflitos interinstitucionais, dialogar com o diferente, pensar coletivamente em saídas para crises sociais ou ambientais. Isso tudo acontece ou deveria estar acontecendo dentro de um programa de voluntariado. O sonho de qualquer área de desenvolvimento de talentos.
O caminho do voluntariado dentro da empresa, na relação com outras áreas do negócio, ou fora da empresa, com o poder público e sociedade civil organizada, deve ser a constante busca de parcerias para construção de valores compartilhados, porém, sempre colocando em primeiro plano o impacto social.
V2V: Quais assuntos podem fortalecer e quais aqueles podem trazer riscos para os programas de voluntariado?
Flávio Seixas: Devemos nos perguntar a quem está servindo o programa de voluntariado. Se serve apenas ao voluntário, coloca o desejo de atuar, as vontades e particularidades acima das questões sociais que a comunidade enfrenta, nesse caso as entidades devem se adaptar aquilo que os voluntários podem oferecer, o que logo causará desinteresse.
Se serve apenas a comunidade, investimos no paternalismo, assumimos responsabilidades sociais para além das nossas possibilidades.
Se serve apenas a empresa, o programa perde sua essência, se confunde com os objetivos comerciais do negócio, pode ser capturado pela lógica do controle dos acontecimentos do programa, o que pode trazer impacto para a credibilidade frente a comunidade.
O voluntariado pode ser uma zona hibrida, onde diferentes interesses dialogam para um resultado comum desejado.
Para além desta reflexão sobre a essência do voluntariado, atualmente muitos temas emergentes podem nos ajudar a revisitar os programas. A mentoria é uma tendência em alta, os profissionais extremamente qualificados podem contribuir com orientação profissional de jovens, com orientação técnica para organizações sociais, para empreendedores sociais e negócios de base comunitária, além disso o investimento em um voluntariado que aprofunda as relações interpessoais gera narrativas que por muito tempo estarão presentes na vida do voluntário e do beneficiário.
A experiência social pode desenvolver competências socioemocionais importantes para os negócios, essa é uma outra perspectiva possível para os programas que querem se fortalecer internamente. Podem mensurar mudanças de comportamento, aprendizados, desenvolvimento de atitudes, habilidades e competências.
Com o avanço de plataformas como o V2V também é possível investir em um voluntariado a distância sem perder a qualidade, em formato de consultoria ou assessoria técnica para desafios sociais.
O advocacy em torno das questões ambientais tem se tornado um tema cada vez mais emergente em nossa sociedade, na medida que assistimos o desmatamento a todo vapor, a contaminação de lençóis freáticos, a falta de gestão dos resíduos que são produzidos, etc.
Com a força da empresa e desejo dos voluntários é possível ressignificar a forma de se relacionar com a natureza.
FLÁVIO SEIXAS
Psicólogo, facilitador organizacional pelo programa Germinar, e especialização em Ciências Sociais (UFMG). Possui extensão em Psicologia Social (USP) e Psicodrama (Sedes) e Aprimoramento na Jornada da Liderança pela Antroposofia (LUMO/ Instituto EcoSocial). Possui experiência de 10 anos na gestão de projetos sociais, investimento social e desenvolvimento de comitês e lideranças. Já desenvolveu oficinas no Brasil, Argentina, Portugal e Moçambique, e atuou com empresas como Camargo Corrêa, Santista Têxtil, InterCement, Alpargatas, Instituto C&A, Instituto BRF, Decathlon, Tetrapak e PepsiCo. Atualmente é sócio-fundador da consultoria Awá Desperta, que atua com desenvolvimento humano, social e organizacional.
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