Nesse post aproveito um pouco dos conhecimentos que tenho sistematizado aqui para o meu mestrado sobre voluntariado, em Lisboa. Dessa vez não se tratam de dicas práticas, mas de alguma reflexão sobre palavras que fazem parte do seu dia a dia no campo das ações sociais empreendidas pelas empresas privadas.
Acompanhe comigo e ao final não deixe de partilhar suas percepções nos comentários.
Um gestor de um programa de voluntariado corporativo vez ou outra precisa fundamentar as suas propostas de ação, interna ou externamente, de acordo com o potencial transformador que deseja para a sua iniciativa.
O problema aqui é que em nosso ciclo profissional “todo mundo entende de voluntariado”, e fica muito fácil se submeter a propostas de parceiros de equipe, gestores, e parceiros, que podem o fazer “escapar” do seu plano inicial. Basta para isso, não estar seguro de seus objetivos e de respaldo técnico.
Nesse cenário são comuns as palavras solidariedade, caridade, filantropia e assistencialismo rondarem os discursos, como conceitos acompanhantes, menos ou mais alinhados da sua concepção e proposta de voluntariado.
Veja abaixo algumas informações sobre duas delas: a caridade e a filantropia, e talvez esse post te ajude a se manter na rota. Ou naquilo que acredite para o seu programa de voluntariado.
A Caridade
Origem
A caridade tem origem cristã e é provavelmente a “mãe” das iniciativas de voluntariado, exercida desde a idade média de forma institucional ou particular.
Chegou ao nosso país por meio das irmandades católicas, e pensada como um “valor espiritual” é uma elaboração moral sobre o mandatório da partilha.
Mas vale lembrar que a partilha sempre foi um valor natural e comum em relações tribais e comunidades menos complexas.
E um autor chamado Robert Castel elabora sobre os conceitos de Durkheim em que há duas formas de sociabilidade:
- a primária em que a mitigação das necessidades de um território se dá de forma mais natural, com a divisão de bens quando oportuno;
- e a sociabilidade secundária, que estaria presente em tipos de sociedades mais complexas, nas quais a assistência seria foco de instituições específicas, que passam a assumir essas responsabilidades, como o caso dos hospitais e os orfanatos. É aqui que se enquadra a caridade da forma como conhecemos em maior volume.
O termo caridade está ligado e direcionado ao cidadão chamado de desvalido. Ou seja, os atos de caridade, seriam destinados a aqueles que são desprotegidos por “paternidade” – ou paternalismo.
A figura de um cidadão dito como desvalido é tão desempoderadora e ao mesmo tempo utilitária, que nessa lógica aos ricos pedir esmola em sua função “era” considerado virtuoso, uma vez que não pediam para si, mas aos outros, portando assim os tais valores da caridade.
Dito isso, a figura utilitária do pobre para salvação dos ricos é uma equação comum na concepção de caridade.
Motivações
As motivações para ações caritativas institucionais sempre foram uma obrigação “nobilitante do caráter” das elites, a começar pelos reis, desde a Idade Média.
Os princípios de nobreza compassiva estavam imediatamente ligados aos valores cristãos da caridade. A caridade era motivada nas mentes nobres, eclesiásticas e também nas leigas (como no caso das confrarias).
O passar dos anos para a caridade foi tocado, não obstante, pelas ideias iluministas e as discursões que se encadearam às voltas da cidadania de MARSHALL (1950) e a sua trimembração em direitos civis, políticos e sociais.
Se você identifica as posturas da caridade nos discursos institucionais que são propostos para a sua empresa, não sei se nesse blog eu proponho que faça algo senão: indexe.
Ou seja, saiba o que está sendo incutido ou perpetuado, e faça assim, se for o caso, da caridade uma escolha, e não reprodução inconsciente de um padrão de apoio social.
A Filantropia
A filantropia em sua prática tem mais em comum do que diferenças em relação à caridade: no cenário em qua ela subsiste, ainda permanece a situação de pobreza e essa justifica a existência dos doadores filantropos.
Remetendo nesse assunto à autora Dilene Nascimento:
“a filantropia pode ser explicada, grosso modo, como a laicização da caridade cristã, ocorrida a partir do século XVIII, e que teve nos filósofos das luzes seus maiores propagandistas”.
E sendo assim, segundo a autora, o “fazer o bem”, a assistência e o socorro aos necessitados, transporta-se de “virtude cristã” da caridade para “virtude social” na filantropia; e a generosidade é entendida como:
“a virtude do homem bem-nascido, que tem inclinação para doar largamente”
Daí, uma forte presença das grandes fortunas entre os principais filantropos.
Diferenças conceituais
Provavelmente uma diferença entre esses dois conceitos (caridade e filantropia) seja o fato de que a filantropia pode conceder ao doador maior protagonismo do seu ato, em relação ao donatário, e confira utilidade a essa publicitação das suas obras, para fins de destaque social e intercâmbio de idéias entre os filantropos.
Contudo, ela precisa, em complexificação, se relacionar com maiores limitações e regulações de um Estado (de bem-estar social, menos ou mais neoliberal, não interessa tanto aqui: há relação).
Mauss (2003) via na sustentação da filantropia uma alternativa à manutenção da solidariedade, pois se o contexto histórico caminhou para maior racionalização e laicização da ação social, talvez pudessem continuar a contribuir financeiramente para obras sociais com um olhar mais político e cidadão. Quem se interessar, vale ler o seu “Ensaio sobre a dádiva”.
Fico a refletir, daqui, em que régua se encontraria o nosso atual Estado brasileiro, nas circunstancias em que observamos nos dias de hoje. Sinceramente opinar assim, de sopetão seria leviano.
Na ideia da dádiva, a ações filantrópicas acabariam por sustentar maior equilíbrio aos problemas trazidos pelo capitalismo.
Provavelmente uma diferença entre esses dois conceitos (caridade e filantropia) seja o fato de que a filantropia pode conceder ao doador maior protagonismo do seu ato, em relação ao donatário, e confira utilidade a essa publicitação das suas obras, para fins de destaque social e intercâmbio de idéias entre os filantropos.
Origem
No Brasil e no mundo a filantropia se desenvolveu historicamente como ação social exercida por empregadores, por famílias e particulares.
Cresceu como um conjunto de obras sociais de relevância, e na altura (estamos falando do período do Estado Novo) estimulou a produção científica – especialmente na área da saúde, e começou também a ser praticada também por sociedades com fins lucrativos em forma de partilha e retribuição das suas riquezas, e como sabemos, passou a gerar atendimento continuado, patrimônio social e cultural por meio das famosas fundações.
Em alguns casos, as fundações em acordos públicos passaram a desempenhar em parceria contratual a função estatal na área da assistência social, educação, saúde e cultura.
Essas relações buscavam, e ainda buscam, a manutenção das fundações como entes de apoio, seja num Estado mais centralizado, seja naqueles mais descentralizados.
Isso significa que na medida em que a gestão pública oscila para vertentes mais neoliberais, a filantropia privada se fortalece como alternativa de reação às necessidades sociais, em forma de “terceirização” de tarefas anteriormente “responsabilidade do Estado”. Ou outro tipo reação, em forma de mitigação, num discurso de uma sociedade civil que “não faz o que o Estado deveria fazer”.
Numa temática frequente e não consensual sobre o melhor modelo de responsabilizações das relações intersetoriais.
Concluindo,
É legal saber que a linha histórica da assistência aos pobres modificou-se de acordo com o amadurecimento das políticas de Estado: ora menos ou mais centralizadas pelo mesmo.
E na medida em que o setor público reagiu e “evolui” no projeto assistencial laico, não necessariamente substitui o modelo prático anterior, mas o ressignificou-o, mantendo basicamente os mesmos tipos de ações.
Isso sinaliza que conceitos como caridade e filantropia no frigir dos ovos não se excluíram no decorrer da história, (de caridade à para filantropia), mas foram sobrepostos. E esssa trajetória iniciou em nosso país no período colonial.
A insistência nesses termos em sua relação com o voluntariado, é mantida até hoje pois os julgo estruturantes, reproduzindo uma ou outra característica dessas abordagens da assistência.
O que você pode ser perguntar enquanto gestor de voluntariado é: essas abordagens buscam reproduzir ou sanar as desigualdades sociais?
Prometo por aqui continuar essa conversa trazendo um pouco sobre solidariedade, assistencialismo e da fundamentação sobre o voluntariado, pois as duas principais coisas que podem nos foratalecer em nossas atuações no ambito social são: um sólido conhecimento técnico e a capacidade de fazer parcerias internas e externas nas nossas empresas.
No campo do Investimento Social e do voluntariado não somos Robin Hood, mas semeadores e agentes do valor compartilhado – no sentido de Porter. (Que não é o Harry Porter…)
Sem romances, está na hora dos gestores do voluntariado empresarial assumirem e encarnarem a maturidade e relevância que o assunto já adquiriu em nosso país.
Temos história, chão percorrido, motivos de sobra para continuarmos, e também muitas ferramentas disponíveis.
Sendo assim, vamos nessa!
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Referências Bibliográficas
CASTEL, Robert. As armadilhas da exclusão in Desigualdade e a questão social. orgs. BELFIOREWANDERLEY, Mariângela; BÓGUS, Lúcia e YAZBEK, Maria Carmelita – São Paulo: EDUC, 2000.
_______. As transformações da questão social in Desigualdade e a questão social. orgs.
BELFIORE-WANDERLEY, Mariângela; BÓGUS, Lúcia e YAZBEK, Maria Carmelita – São Paulo:EDUC, 2000.
_______. Metamorfoses da questão social: uma crônica do salário; tradução de Iraci D. Poleti. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. 5ª Edição, 2005.
DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. São Paulo, Melhoramentos, 1978.
NASCIMENTO, Dilene Raimundo. Liga Brasileira contra a Tuberculose: um século de luta. Fundação Ataulpho de Paiva — Rio de Janeiro, Quadratim/FAPERJ, 2001, 156p.
MAUS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac e Naify, 2003.
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