Solidariedade: sobre os conceitos e a relação direta com o voluntariado

A solidariedade é a nossa fortaleza no momento atual. Ela nos ampara enquanto humanos e nos protege de uma crise de saúde e econômica.

Então, o gestor de voluntariado ou de projetos sociais muito ouvirá falar sobre esse termo. Quanto mais o conhecer, mais saberá por qual discurso ele está sendo capturado e saberá defender a importância do seu projeto para os negócios e para o ambiente econômico atual.

Primeiramente, reflita

  • Você acredita que o seu programa de voluntariado é também solidário?
  • A empresa solidária é uma empresa boazinha ou inteligente?

Aliás: é estratégico não ser solidário?

Este post tem como objetivo te instrumentalizar. E o objeto em questão é o termo solidariedade.

Portanto, aproprie-se!

Entretanto, se quiser ir logo para as dicas práticas, pule para o título 4.

1. “Mil e um” conceitos de solidariedade para você se firmar

– Conceito etimológico e no dicionário

O termo solidariedade, etimologicamente, significa

laço ou vínculo recíproco de pessoas ou coisas independentes”,

bem como

“sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade e a relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s)” (Ferreira, 1996, p. 1607). 

No dicionário Michaelis (Michaelis, 2002, p. 734), o verbete solidariedade aparece como:

condição grupal resultante da comunhão de atitudes e sentimentos, de modo a constituir o grupo de unidade sólida, capaz de resistir às forças exteriores e mesmo de tornar-se ainda mais firme em face da oposição vinda de fora”,

já aqui é possível associar a solidariedade também como sendo um indicador de resiliência de um grupo.

– Do ponto de vista jurídico

No âmbito jurídico, ela é usada para designar

uma situação que é estabelecida entre os indivíduos (credores ou devedores) que se apresentam solidários em uma obrigação” (Morais e Tenório, 2017, p.6).

O jurista Avelino (2005) a conceitua adicionando a perspectiva de facilitadora da vida em sociedade e precipitadora do respeito:

“Atuar humano, de origem no sentimento de semelhança, cuja finalidade objetiva é possibilitar a vida em sociedade, mediante respeito aos terceiros, tratando-os como se familiares o fossem; e cuja finalidade subjetiva é se auto-realizar, por meio da ajuda ao próximo” (Avelino 2005, p. 228)

Martinez (1995, p.78), voltado ao direito previdenciário, associa a solidariedade ao instinto de preservação:

A solidariedade social é projeção do amor individual, exercitado entre parentes e estendido ao grupo social. O instinto animal de preservação da espécie, sofisticado e desenvolvido no seio da família, encontra na organização social ambas as possibilidades de manifestação”.

Remedio (2016, p. 256) nos traz a ideia de solidariedade, hoje, integrando

o valor base dos direitos fundamentais de terceira dimensão”.

Entre os direitos de solidariedade previstos no âmbito do Direito Internacional, destacam-se: a) o direito à paz; b) o direito ao desenvolvimento; c) o direito ao patrimônio comum da humanidade; d) o direito à comunicação; e) o direito à autodeterminação dos povos; e f) o direito ao meio ambiente. O princípio da solidariedade também possui lugar de destaque no constitucionalismo contemporâneo, sendo muitos os Estados que atualmente o contemplam em suas respectivas Constituições. (Remedio, 2016, pp. 256 – 257).

– Do ponto de vista cosmológico

Para Almeida (2007, pp. 67-71), as definições dos dicionários transparecem uma ideia de “corporativismo social”, que seria diferente daquilo que o autor chama de solidariedade cosmológica, tribal ou cultural.

Ou seja, a “solidariedade cosmológica” seria uma característica anterior e inerente a uma instância mais ancestral em que o humano significa um ou uma unidade.

É como se o autor contrapusesse a ideia etimológica de “solidez que fortalece um grupo” à de indissociação, em que existira solidariedade naturalmente porque não há separação entre os homens. 

Esse mesmo aspecto Boff (2017) chamou de solidariedade essencial:

“se bem repararmos, a natureza não criou um ser para si mesmo, mas todos os seres uns para os outros. Estabeleceu entre eles laços de mutualidade e redes de relações solidárias. A solidariedade originária nos faz a todos os irmãos e irmãs dentro da mesma espécie” (Boff-2017).

– Do ponto de vista emocional

Do ponto de vista emocional, Morais e Tenório (2017, p. 6) ressaltam a solidariedade significando um sentimento de compaixão pelo outro.

“Para o senso comum a solidariedade está fortemente ligada ao campo das emoções. Seria uma sensibilidade para com os menos favorecidos que leva a uma atitude de caridade”

e é interessante que o termo caridade apareça aqui, numa esfera em que a solidariedade seria uma característica anterior à mesma, como um sentimento, ou uma percepção social e moral impulsionadora da ação social.

2. A história da Solidariedade entre o individualismo e o generalismo

Em uma perspectiva histórica, a Antiguidade Clássica aponta as primeiras reflexões sobre o valor da solidariedade que emerge, ali, na contraposição entre individualismo e o generalismo.

Individualismo

O primeiro (o individualismo), defendido por Protágoras em sua famosa frase

 “o homem é a medida de todas as coisas, das que são o que são e das que não são o que não são”,

representa a vida em sociedade não como uma necessidade, mas uma opção do homem, ser pensante, que basta por si.

Generalismo

O generalismo, um conjunto de argumentos contrários ao individualismo, é encontrado nas lições de Platão (A República) e Aristóteles (A Política). Na República, por exemplo, “Platão afirma sua predisposição para a generalidade, indicando a solidariedade como forma de assegurar uma convivência social justa e harmoniosa.” (Oliveira da Silva, 2006, p. 4).

A Idade Média

A Idade Média teocentrista não teria permitido muita reflexão sobre os valores individuais e a solidariedade. Apenas o esgotamento do modelo feudal proporcionou um reencontro do homem com os pensamentos filosóficos e com a ciência, revelando em sequência o Renascimento e o Iluminismo (Silva, 2006, p. 7), trazendo de volta o antropocentrismo protagórico, sob afirmações como aquela de Da Vinci que “o homem é o modelo do mundo”.

E a solidariedade revela-se, também aí, em contraponto aos valores individualistas.

O iluminismo traz de volta a solidaridade

Como exercício de um princípio ético, a filosofia do iluminismo de “Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, via na solidariedade a capacidade de manter unida uma coletividade composta de indivíduos isolados” (Selli e Garrafa, 2006, p. 242).

Eis que, adiante na linha do tempo, o aparecimento do Estado liberal-capitalista gerou miséria e competição e as dinâmicas trabalhistas da Revolução Industrial provocaram injusta exploração da força de trabalho.

Pierre Leroux, em meio do século XIX, quando despontaram as associações de trabalhadores pioneiras, disse: “devemos entender a caridade cristã, hoje, como solidariedade mútua entre os seres humanos”, compreendendo a solidariedade como evolução da caridade.

Ou seja, aqui iria-se da assimetria doador-donatário para a participação na democracia, conforme Laville (2005, p. 1), que também afirma ser Leroux o responsável por trazer a solidariedade para o vocabulário moderno.

A Solidariedade mecânica e a orgânica

Durkheim (1987, cit por Selli e Garrafa, 2006, pp. 242-243), pela ótica da sociologia do século XIX, apresenta dois tipos de solidariedade: a mecânica e a orgânica.

A mecânica diz de quando “os indivíduos vivem em sistemas econômicos marcados pela ausência de especialização, entre eles (divisão do trabalho), o que os mantém unidos é a solidariedade mecânica, que, segundo o autor, caracteriza-se pelo compartilhamento de ideias comuns, costumes, crenças, hábitos”.

Ela se revela nos laços familiares, no ambiente religioso, nos costumes e tradições.

E a orgânica, que “faz que os indivíduos, sendo interdependentes, comportem-se como um organismo” – influenciado pela ciência biológica, em que os organismos sociais “imitariam” a natureza -, se dá por meio da divisão social do trabalho.

Justamente na interdependência e no reconhecimento de que todos são importantes no sistema é que está essa solidariedade.

Durkheim, à semelhança de Platão e Aristóteles, também pretendeu demonstrar que o “indivíduo há de se sacrificar, em certa parcela de sua liberalidade, em nome do todo.

Há de agir em prol do Estado, da sociedade, do todo, pois é da sociedade que ele, homem, provém, e não o inverso” (Silva, 2006, P. 11).

Ainda no século XIX

Ainda no século XIX, nos princípios anarquistas, a solidariedade se alinhou às relações de ajuda mútua e apoio.

Peter Kropotkin, ao se voltar ao Anarquismo – comum na Rússia do fim daquele século, procurou dar um fundamento natural à solidariedade, em que “o ‘estado de natureza’ em que se encontram os seres humanos na ausência do Estado seria como uma ‘guerra de todos contra todos’.

Nesse cenário, a ajuda mútua, ou solidariedade, representaria um papel fundamental na evolução”.

 “Se fizermos um teste indireto e perguntarmos à Natureza quem é mais apto, se as espécies que vivem constantemente em guerra ou as que se apoiam mutuamente, veremos de imediato que os animais que adquirem o hábito da ajuda mútua são os mais aptos” (Kropotkin & Ridley, 2000, cit. por Selli e Garrafa, 2006, pp. 242).

Kropotkin, em resposta ao Darwnismo Social, busca dizer que o mutualismo (ou ajuda mútua), ao contrário da competição, é a principal potência na garantia à sobrevivência de um grupo ou o seu progresso.

A nomenclatura “solidariedade” se tornou popular, a partir da década de oitenta, pelo Sindicato Solidariedade (Solidarnosc) da Polônia.

No mesmo período, em 1978, foi eleito papa na Igreja Católica um polonês, Karol Wojtyla (João Paulo II.), cujas primeiras encíclicas (Sollicitudo Rei Socialis) trazem uma doutrina social que é construída sobre as bases da solidariedade. Ainda que o assunto não tivesse sua gênese naquele papado, antes disso, houve o surgimento do solidarismo cristão. 

Na busca de um contraponto ao individualismo liberal, alguns pensadores católicos no final do século XIX, preocupados com o papel da doutrina social da Igreja, desenvolveram uma corrente de pensamento chamada ‘solidarismo’. O interesse era o de fazer acontecer um equilíbrio entre o individualismo liberal e o coletivismo marxista (Wildmann, 1961). No bojo da questão, estava o interesse da Igreja Católica pelo direito à igualdade de todos os seres humanos. Tanto a doutrina social da Igreja quanto a teologia da libertação têm em sua gênese a solidariedade com as vítimas do sistema liberal capitalista (Anjos, 2000). Na compreensão da teologia da libertação, a solidariedade autêntica é a solidariedade entre desiguais”. (Selli e Garrafa, 2006, pp. 243).

A “solidariedade solidarista” passa então a compor esse discurso de luta por direitos sociais, articulada pela igreja católica em sua parcela do cristianismo social, nas pastorais operárias e em outras frentes humanitárias, buscando situar o indivíduo de forma mais equilibrada em relação ao Estado e o Mercado. No solidarismo, a comunidade estava no centro desse equilíbrio.

Em seguida, a Teologia da Libertação melhor frutificou na América Latina, entre as décadas de 1950 e 1960, os seus primeiros fundamentos e, na década de 70 a 80, atingiu a sua maior expressão.

4. O voluntariado solidário é o que fortalece laços.

O termo solidariedade, então, situa o voluntariado no indivíduo que exerce seus direitos e deveres, em um contexto mecânico ou orgânico – a citar Durkheim – e, sob uma matriz teológica-social, enlaça um propósito associacionista perante poderes institucionais maiores, a saber o Estado e o Mercado, e mutualista, quando carrega em si a proposta ou sentido de conservação e subsistência do grupo.

O voluntariado solidário é o que fortalece laços.

Isso está refletido no último relatório da ONU (O Estado do Voluntariado no Mundo), que reforça o quanto os laços solidários tornam a comunidade mais resiliente, ou seja, mais apta para suportar pressões e crises.

O blog Vittude.com traz alguns benefícios da solidariedade para a saúde mental:

  1. Ajudar os outros contribui para a manutenção da sua saúde e pode diminuir o efeito de doenças físicas e psicológicas;
  2. A euforia sentida após um ato generoso envolve sensações físicas que liberam endorfinas e outras substâncias naturais do corpo que diminuem dores;
  3. Os benefícios na saúde mental e física continuam sendo sentidos por horas e até dias depois do ato solidário, especialmente quando ele é lembrado com carinho;
  4. Problemas ligados ao estresse são revertidos com atitudes positivas direcionadas aos outros, reduzindo sensações de depressão, fobia social, hostilidade e isolamento;
  5. Ajudar o outro gera sensações de alegria profunda, resiliência emocional e vigor;
  6. A consciência e intensidade de dores físicas pode diminuir consideravelmente com um ato caridoso;
  7. Um senso de otimismo e de valor próprio é gerado à cada ação solidária, melhorando a autoconfiança;
  8. Segundo pesquisas, ser voluntário com frequência gera uma sensação de alegria equivalente a se formar na faculdade ou dobrar o seu salário.

Cada um por si?

Assim como outros hábitos que sabemos que são saudáveis, tendemos a não exercer a solidariedade em 100% dos momentos em nossas vidas, porque o peso da resistência, gerado pela forma como nossos sistemas econômico e social são formatados, é muito maior.

Uma força inconsciente nos faz voltar para a “roda do ratinho”, correndo atrás de nossos objetivos individuais.

A crença de “cada um por si” às vezes é tão forte que o indivíduo que a questiona sente medo de não sobreviver e não prosperar.

5. Então como o seu voluntariado pode ser mais solidário

Fortalecendo vínculos, o exercício da cidadania, a empatia, para além das gentilezas diárias, reforçando a união como a melhor via de passarmos pelo momento atual, que é difícil, e também pelos futuros.

Ora, na sua empresa você pode:

  • Capacitar os seus comitês regionais de voluntariado para a coesão social, de modo que com seu poder de mobilização possam fortalecer suas comunidades locais, dando lugar e papel para as entidades, para o comércio e para a população. Um comitê local pode ter, para além de ações voluntárias pontuais ou contínuas, o importante papel de manter os vínculos, as relações, fazer pontes, estabelecer uma rede local e mantê-la ativa.
  • Estabelecer metas coletivas junto à equipe de RH, de modo que a competição interna não sobrepuja a cultura organizacional ultrapassando o saudável. A competição interna pode ser trocada pela colaboração interna e externa, como forma de atingir os objetivos, e isso precisa estar expresso desde os valores da empresa até como as pessoas são valorizadas nela.
  • Estabelecer espaços de escuta: para que os colaboradores, a comunidade local e os parceiros externos possam se expressar, de modo que, conhecendo as pessoas com as quais se relacionam e a sua empresa (por meio ou não do seu programa de voluntariado), possam exercer a empatia, um pré-requisito para os vínculos de colaboração. Uma empresa solidária necessariamente dialoga e sabe fazer isso genuinamente.
  • Continuar com as ações de voluntariado: as ações de voluntariado exercitam automaticamente o senso de solidariedade, desde o impulso inicial de participação, passando pelo clima organizacional que permanece mais engajado e empático, até o relacionamento que é estreitado externamente junto a entidades sociais ou comunidades. Em fase de pandemias e crises, as pessoas são naturalmente solidárias. Você, enquanto empresa, pode ser o agente que estimula, dá suporte e valoriza isso.
  • Valorizar as relações: torne as ações voluntárias, solidárias, dentro e fora da empresa, um valor. Ou seja: demonstre por meio das lideranças e dos canais de comunicação da sua empresa o quanto os laços solidários transformam contextos, dê exemplos, dando luz para os benefícios de ser solidário, e as pessoas poderão, dia a dia, compreender a colaboração como uma boa prática.
  • Fazer parcerias externas: promova ações de voluntariado com outras empresas, ainda que concorrentes, e mostre o valor da união do ponto de vista de recursos, processos, sinergias como um todo. Mantenha os laços com as entidades sociais ligadas à sua empresa, não se distancie nesse momento, afinal elas ainda poderão te ensinar muito. Além disso, o voluntariado corporativo entre empresas é o futuro e você pode sair na frente mostrando que só é possível prosperar num contexto próspero.

Aliás essa tem sido minha máxima há tempos: só é possível uma empresa prosperar num contexto que também seja próspero.

Gostou desse mega texto?

Espero que sim. Visite-o aos pouquinhos, não precisa ler tudo de uma vez, pense nele como uma ferramenta à qual você sempre pode recorrer.

Com amizade,

Bruno Morais


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