Facilidades na obtenção de crédito e financiamentos com parcelas a se perder de vista foram fatores cruciais para o endividamento da população brasileira nos últimos 20 anos, principalmente pelas famílias de baixa renda.
As administradoras de cartões de crédito e financeiras, diante da possibilidade de oferecer crédito consignado, não perderam tempo. A conquista de cada cliente, – qualquer um –, era comemorada pelo setor.
Estudantes sem renda; desempregados; subempregados, não importava. O lance era expandir a base de usuários. O país, embriagado de crédito, se entregava à farra.
O endividamento e a inadimplência requereram Educação Financeira
Com o tempo esse modelo de “distribuição de dinheiro fácil” foi se esgotando e essa constatação deu origem a uma série de ações.
Promovidos pelo sistema financeiro, seminários, painéis, congressos e workshops discutiam a importância da educação financeira para a população.
Naquele contexto ‘ensinar educação financeira’ era identificado sobretudo com ‘ensinar a pagar as contas em dia’.
Tendo em vista esse objetivo, e com variados graus de competência, todos os grandes bancos desenvolveram sites, criaram cartilhas e espalharam planilhas com intenção de educar a “base da pirâmide”.
O Voluntariado empresarial e a Educação Financeira
Em paralelo, o país assistia ao crescimento do voluntariado empresarial. Se desde a década de 90 iniciativas de apelo cívico à participação social ganharam relevância – sendo o movimento Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, fundada pelo sociólogo Betinho, em 93, seu representante mais conhecido – a instituição pela ONU, em 2001, do Ano Internacional do Voluntariado propiciou novo impulso à ampliação dessas iniciativas.
O estímulo a que organizações públicas e privadas tomassem parte na resolução de problemas sociais ganhou vulto. Para além de doações a organizações do terceiro setor, as corporações passaram a adotar práticas de trabalho voluntário.
O Dia do Voluntariado tornou-se ação costumeira na maior parte dos calendários corporativos do país.
Aos poucos, em resposta ao encorajamento das empresas a que seus funcionários se envolvessem em iniciativas de voluntariado, foi sendo desenhado um modelo de atuação que, sem se desgarrar da intenção social, passou a priorizar iniciativas que beneficiavam, na ponta do laço, os interesses das próprias corporações.
Neste cenário, a expectativa de que os funcionários se voluntariassem para ajudar a equacionar a inadimplência, levando Educação Financeira (EF) à população de baixa renda, não constituiu surpresa. De fato, iniciativas com essa vocação passaram a pipocar por todos os lados.
Os cuidados para a Educação Financeira pelo voluntariado
Àquela altura, como especialista em EF, com considerável experiência na preparação de multiplicadores, tive oportunidade de atender várias empresas com programas de voluntariado corporativo.
Sendo dinheiro um assunto tabu, uma série de cuidados se faziam necessários à preparação dos voluntários.
De saída havia o desafio de persuadir a corporação, sobretudo quando instituição financeira, a abandonar as tentações de se valer do trabalho voluntário para o marketing rasteiro ou promoção da venda de produtos.
De modo geral, os clientes compreendiam que, ao conter o apetite imediato por obter retorno financeiro com as ações voluntarias, teriam mais a ganhar nos médio e longo prazo.
2 razões porque não se trata de ensinar a lidar com o dinheiro
Assentada essa premissa era hora de preparar os voluntários para algumas especificidades do trabalho.
Havia um bocado de coisa que os voluntários precisavam aprender sobre EF antes de ir a campo.
Porém, nenhuma delas sombreava a primordial: era preciso que os voluntários abdicassem de suas convicções sobre ‘ensinar a lidar com dinheiro’. E isso por duas razões.
1. Não é mera transferência de informação
Em primeiro lugar, porque o mais comum é que pessoas hábeis na condução das próprias finanças se sintam motivadas a tomar parte em projetos desse tipo.
Se, de um lado, existem vantagens na simpatia que o voluntário sente pelo tema, de outro, isso pode abrigar certa dose de complicação. A razão para isso é velha conhecida de todos nós: a vaidade.
Não é porque alguém, por exemplo, tem disciplina para elaborar um orçamento que terá mais facilidade para ‘ensinar’ outra pessoa a fazer o mesmo.
Desmontar a armadilha da presunção exige reconhecer que o que a gente sabe funciona para nós mesmos. Não necessariamente os outros se beneficiarão do nosso “método” tão particular.
2. Disposição para aprender
A segunda razão para que o voluntário abandonasse convicções sobre ensinar a lidar com dinheiro tinha a ver com o que há de mais bonito no processo de EF para adultos: para ensinar é preciso aprender.
É a disposição para aprender que permite ao voluntário ouvir, de fato, a demanda que lhe é dirigida.
Para dizer de outro modo, enquanto permaneciam seduzidos por si mesmos não se instaurava nos voluntários espaço para relações de troca.
Estimular nos voluntários esse estado de real abnegação – dispor-se não ao que se supõe que o outro precisa, mas estar preparado para doar o que foi, de fato, solicitado – constituiu sempre a parte mais delicada do trabalho de formação.
Superada essa etapa os voluntários estavam no ponto certo para mergulhar na capacitação.
“Estimular nos voluntários esse estado de real abnegação – dispor-se não ao que se supõe que o outro precisa, mas estar preparado para doar o que foi, de fato, solicitado – constituiu sempre a parte mais delicada do trabalho de formação”.
Uma jornada de cuidado, atenção e respeito
Aprendizado conjunto
A esse ponto, por já compreenderem a importância simbólica do que ofereceriam à população atendida – qual seja, instrumentos para uma real transformação da relação com o dinheiro –, cada voluntário compreendia que o esforço de excelência seria sua parceira de jornada.
Do cuidado com a organização dos materiais para os encontros com a população à preparação para lidar de maneira mais respeitosa com participantes finais (“no encontro de hoje vamos todos aprender juntos” ao invés de “irei ensinar a vocês”), a tudo os voluntários respondiam com intenso comprometimento.
Métricas para acompanhar tudo certinho
Os projetos contavam com múltiplas métricas para acompanhamento dos resultados: observação do multiplicador em campo, pré e pós-testes, pesquisa qualitativa de satisfação dos participantes e acompanhamento da evolução do público final durante 12 meses. O sucesso aferido por essas pesquisas serviu sempre como prova de qualidade do trabalho dos voluntários.
Voluntários são essenciais para a geração de impacto social
É por isso que este artigo é dedicado às centenas de voluntários que passaram por alguma formação comigo e que, por todo canto do país, me deram a honra de aprender com eles.
Obrigada por serem protagonistas da transformação social!
* Cassia D’Aquino é educadora com especialização em crianças, pós- graduada em Ciências Políticas, é autora de artigos e livros sobre educação financeira. Criadora e coordenadora do Programa de Educação Financeira em inúmeras escolas do Brasil, é Corresponding Member da International Association for Citizenship, Social and Economics Education (IACSEE). Atua como palestrante em Congressos no Brasil e exterior. É a representante do Brasil no Global Financial Education Program, iniciativa voltada para o desenvolvimento da educação financeira da população de baixa renda em todo o mundo. É assessora de diversas instituições públicas e privadas para criação e desenvolvimento de programas de largo alcance. Entre outras, podem ser destacadas suas participações em projetos do Banco Central do Brasil, Banco Nacional de Angola, BM&F Bovespa, Febraban, Serasa Experian e USAID (United States Agency for International Development).